OUTROS TONS DE AZUL • POESIA POLÍTICA ALEMÃ DO SÉCULO XX • VERSÕES DE JOÃO BARRENTO
OUTROS TONS DE AZUL • POESIA POLÍTICA ALEMÃ DO SÉCULO XX • Versões de João Barrento • 2021 Outro Modo 156 pgs • Poemas de Bertolt Brecht, Paul Celan, Günter Grass, Ingeborg Bachmann, Heiner Müller, Sarah Kirsch, Hans Magnus Enzensberger & Etc. • Selecção, Organização, Introdução de João Barrento • Design de André Luz • Lançamento dia 15 de Junho de 2021, com a presença de Bruno Monteiro, João Barrento & leituras de Diogo Dória • Linha de Sombra • www.linhadesombra.com • Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema ■
Tudo depende sempre dos contextos, e a poesia que de algum modo se quer política nunca os esquece. Há, de facto, tempos de acção e intervenção e tempos de espera. A nossa antologia (…) pretende espelhar esta dualidade, com a primeira metade do século, até aos anos sessenta, a corresponder melhor ao paradigma intervencionista, e a segunda, até quase aos nossos dias, ao segundo paradigma, mais indefinido e expectante. Mas esta divisão será sempre redutora, e só a leitura da própria poesia, na sua inserção temporal, poderá fornecer uma imagem mais próxima de grande diversidade de vozes e de pontos de vista poético-políticos nela presentes.
INTRODUÇÃO, João Barrento
Se fôssemos imortais
Tudo iria mudando.
Como somos mortais
Muita coisa fica como está.
SE FÔSSEMOS IMORTAIS, Bertolt Brecht
Nas livrarias pilhas de
Bestsellers literatura para idiotas
A quem não basta a televisão
Ou o cinema que embrutece mais lentamente
Eu dinossauro não de Spielberg estou sentado
Pensando na possibilidade
De escrever uma tragédia Santa ingenuidade!
AJAX POR EXEMPLO, Heiner Müller
Não duvides
daquele
que te diz
que tem medo
mas receia
aquele
que te diz
que não conhece a dúvida
MEDO E DÚVIDA, Erich Fried
Há-de o abutre comer margaridas?
Que querem que faça o chacal - que largue a pele? - e o lobo? Há-de
ele arrancar os próprios dentes?
Que é que vos desagrada
nos comissários políticos e nos Papas,
por que olhais com olhar de carneiros mal mortos
para o ecrã hipócrita do televisor?
E quem é que cose ao general
a faixa de sangue nas calças? Quem trincha o capão para o usurário?
Quem é que pendura orgulhoso a cruz de lata
sobre o umbigo esfomeado? Quem
aceita a gorjeta, a moeda de prata,
o pataco que compra o silêncio? Há
muitos roubados, poucos ladrões; quem
é o primeiro a aplaudi-los, quem pendura as condecorações, quem
está desejoso de mentiras?
Olhem para o espelho: covardes,
tremendo o fardo da verdade,
avessos a aprender, deixando aos lobos
a responsabilidade de pensar,
o vosso adorno preferido é a argola no nariz,
não há desilusão que seja estúpida, nem consolação
barata de mais para vós,
toda a chantagem vos parece branda de mais.
Vós, os cordeiros! Irmãos são,
comparadas convosco, as gralhas:
vocês cegam-se uns aos outros.
Fraternidade é a palavra de ordem
entre os lobos:
eles andam em alcateias.
Louvados sejam os ladrões: vós,
convidando à violação, lançai-vos sobre a cama podre
da obediência. Até latindo
continuais a mentir. Quereis que vos despedacem. Não sois vós
quem transformará o mundo.
DEFESA DOS LOBOS CONTRA OS CORDEIROS, Hans Magnus Enzensberger
Vasto é o mundo e os caminhos da terra que eu vi,
e muitos os lugares, e a todos conheci;
vi todas as cidades que aos pés das torres se estendem,
os homens que virão e os que já se despedem.
Vastos eram os campos de neve e de sol, entre carris e estradas, entre a montanha e o vale.
E era vasta a boca do mundo e cheia de vozes no meu ouvido
e ditava-me, ainda de noite, os cânticos do mundo dividido.
Bebi de cinco copos o vinho, de um só trago,
quatro ventos, em sua casa mutante, secam-me o cabelo molhado.
A viagem chegou ao fim.
Mas eu nada cheguei a terminar,
cada lugar ficou com parte do que pude amar,
cada uma das luzes um olho me cegou,
em cada sombra o meu vestido se rasgou.
A viagem chegou ao fim.
Continuo amarrada a tudo o que é distância, inteira,
mas nenhum pássaro me levou para lá da fronteira,
nenhuma água, das que correm para a foz,
arrasta o meu rosto, que os olhos no chão traz,
arrasta o meu sono, que não quer ser levado…
Sei que o mundo está mais perto e está calado.
Por detrás do mundo uma árvore haverá
com folhas feitas de nuvens
e uma coroa que de azul se tece.
Na sua casca de fita vermelha de sol
o vento grava o nosso coração
e com orvalho o arrefece.
Por detrás do mundo uma árvore haverá,
nos seus ramos um fruto,
e com casca de ouro se vem mostrar.
Vamos olhar para lá,
quando ele, no Outono do tempo,
para as mãos de Deus rolar!
VASTO É O MUNDO, Ingeborg Bachmann