O FAROL DE AMOR • RACHILDE
O FAROL DE AMOR • Rachilde • 2018 Sistema Solar 171 pgs • Tradução & Apresentação de Aníbal Fernandes • Na capa: Anton Melbye, O Farol de Eddystone 1846 • Linha de Sombra • www.linhadesombra.com • Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema ■
Em memórias de marinheiro nunca foi visto alguém esquecer-se de acender um farol, fosse ele de terceira ordem, sobretudo quando há dois guardas válidos e o tempo não está de fazer perder a cabeça. O vento soprava rijo em redor de Quesant, mas não ao ponto de fazer a gaiola cair para cima de nós, e apesar do sonho que eu tive ali ninguém bebera um copo a mais. Não me pus, no entanto, a pensar nisto. Tinha os miolos confusos por causa das visões de saias; e o grito do velho, como uma faca afiada, espetara-me no coração as minhas obrigações. (...) O céu estava pesado e caía-me no crânio como um carapuço. Mais densa, a noite cravava-nos unhas de veludo nos olhos. Lá em baixo o mar batia, cantava a sua música de morte, estendia de um lugar negro a outro a sua roupa branca já preparada para ser o último trajo das equipagens. Esta singular vertigem que eu ia sentindo, sentado no terraço, voltava a deixar-me a cabeça tonta. Sim, eu sentia-me sempre atraído pelo nada, sugado, forçado a colar-me aos parapeitos do caminho da ronda, evitando assim dar um salto sei lá para onde. Não era a altura do farol mas o seu isolamento, estar metido no meio da onda, que me assustavam. Imaginava-o mal apoiado e um pouco inclinado, talvez devido à má forma do rochedo onde fora construído. Seno farol estava direito, então a rocha estava torta. Nada sabemos da força das ondas, tal como não sabemos nada das imprevisíveis marés. Existem sempre coisas que acontecem e que escapam à ciência dos engenheiros. Trinta e seis anos de vida e velhice para uma obra de pedra que dia e noite apanha as furiosas pancadas do oceano.
IV. Rachilde